domingo, 20 de março de 2011

História comum

           Caí na copa do chapéu de um homem que passava...Perdoa-me este começo; é um modo de ser épico.Entro em plena ação.Já o leitor sabe que caí,e caí na copa do chapéu de um homem que passava;resta dizer donde caí e por que caí.
            Quanto à minha qualidade de alfinete,não é preciso insistir nela.Sou um simples alfinete vilão,modesto,não alfinete de adorno,mas de uso desses com que as mulheres do povo pregam os lenços de chitas,e as damas da sociedade os fichus,ou as flores,ou isto,ou aquilo.Aparentemente vale pouco um alfinete;mas,na realidade,pode exceder ao próprio vestido.Não exemplifico;o papel é pouco,não há senão o espaço de contar minha aventura.
            Tinha-me comprado uma triste mucama.O dono do armarinho vendeu-me,com mais onze irmãos,uma dúzia,por não sei quantos réis;coisa de nada.Que destino!Uma triste mucama.Felicidade este é o nome,pegou no papel em que estavamos pregados,e mete-o no baú.Não sei quanto tempo ali estive;saí um dia de manhã para pregar o lenço de chita que a mucama trazia ao pescoço.Como o lenço era novo,não fiquei grandimente desconsolado.E depois a mucama era asseada e estimada,vivia nos quartos das moças,era confidente dos seus namoros e arrufos;enfim,não era um destino principesco,mas também não era um destino ignóbil.
            Entre o peito da felicidade e o recanto de uma mesa velha,que tinha na alcova,gastei uns cinco seis dias.De noite,era despregado e metido numa caixinha de papelão,ao canto da mesa;de manhã,ia da caixinha ao lenço.Monótono,é verdade;mas a vida dos alfinetes,não é outra.Na véspera do dia em que se deu a minha aventura,ouvi falar de um baile no dia seguinte,em casa de um desembargador que fazia anos.As senhoras preparavam-se com esmero e afinco,cuidavam das rendas,sedas,luvas,flores,brilhantes,leques,sapatos;não se pensava em outra coisa senão no baile do desembargador.Bem quisera eu saber o que era baile,e ir a ele;mas uma tal ambição podia nascer na cabeça de um alfinete,que não saia do lenço de um triste mucama? - Certamente que não.O remédio era ficar em casa.
 - Felicidade - diziam as moças,à noite,no quarto - ,dá cá o vestido.Felicidade,onde estão as outras meias?
 - Que meias,nhanhã?
 -As que estvam na cadeira...
 -Uê!nhanhã!Estão aqui mesmo.
          E Felicidade ia de um lado para o outro,solícita,obediencia,meiga,sorrindo a todas,abotoando uma,puxando as saias de outras,compondo a calda desta,consertando o diadema daquela,tudo com um amor de mãe,tão feliz como se fossem suas filhas.E eu vendo tudo.O que me metia inveja era os outros alfinetes.Quando os via ir da boca da mucama,que os tirava do toalete,para o corpo das moças,dizia comigo,que era bem bom ser alfinete de damas,e damas bonitas que iam a festas...


 A estação,15 de abril de 1883; MACHADO DE ASSIS.

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